O Canto Académico De Coimbra (Curta Resenha Histórica)

Duma maneira geral, quando se faz referência ao "chamado Fado de Coimbra", o estudante de Medicina Augusto Hilário (1864-1896), surge- nos como a figura central do seu aparecimento. Afirma-se até, que a Serenata Coimbrã terá surgido com ele, no início dos anos 90 do século XIX. Todavia, a Serenata já existia em Coimbra, muito antes do Fado- Serenata de Augusto Hilário, e muito antes do Fado ter chegado a Portugal.

Sabe-se que, pelo menos, desde o século XVI, era hábito os estudantes de Coimbra cantarem noite dentro pelas ruas da cidade. Se seria um Canto Serenil, não o podemos, seguramente, afirmar, mas que era um canto de rua, disso temos pouca dúvidas. O que sabemos, também, é que a Serenata sofreu um forte impulso, nos anos 50 do século XIX, graças a dois estudantes: João de Deus (1830-1896) e José Dória (1824-1869).
João de Deus, estudante irregular de Direito, entre 1849/59, cantava temas de sua autoria e canções populares, em serenatas, fazendo-se acompanhar à viola de arame.
José Dória, estudante de Medicina, foi um exímio executante de viola toeira (instrumento popular de Coimbra), acabando por dar à estampa baladas, barcarolas e nocturnos, cantando canções populares da própria cidade e executando, também, música para as fogueiras.

A partir da década de 60 de novecentos, a Serenata estava muito vulgarizada em Coimbra, e por volta de 1880, ela estava verdadeiramente enraizada num duplo filão: o popular e o académico.
- O Popular, cuja serenata estava circunscrita à parte baixa da cidade, geograficamente limitada pela Couraça de Lisboa, Porta de Almedina e Igreja de Santa Cruz.
- O Académico, cuja Serenata se reservava ao território da Alta - espaço físico por excelência da Academia - onde se situava a Universidade.
No entanto, quer estudantes, quer populares, levavam a efeito serenatas fluviais - em ocasiões especiais de eventos a comemorar - no rio Mondego, transportando-se em barcas serranas.

É por finais da década de 90 do século XIX, que surgem alguns "fados" da autoria de Cândido Viterbo (que em 1901 frequentava a Faculdade de Direito), e que estudantes-poetas (como Augusto Gil, António Nobre, Afonso Lopes Vieira e Fausto Guedes Teixeira) dão à estampa quadras que ficaram conhecidos por fados - mas que mais não eram do que cantigas populares - e que tanto os estudantes, como os futricas (povo de Coimbra) e as tricanas (mulheres do povo de Coimbra e arredores), cantavam, no intervalo das danças e das marchas em tempo de fogueiras.

Depois de Augusto Hilário, e já nos princípios do século XX, destaque para Vicente Arnoso (1880-1925) e Alexandre Torres (1886- 1969), seguindo-se-lhe, Manassés de Lacerda (1885-1962) e Alexandre Resende (1886-1953).

Por volta de 1915, António Menano (1895-1969) chega a Coimbra para cursar Medicina, e no seu tempo de estudante, tanto canta autênticos fados de Lisboa, como canções e cançonetas, populares ou eruditas, acompanhadas ao piano, para além de outros temas de autoria, por exemplo, de seu irmão Francisco - que era guitarrista. Nessa altura a Canção de Coimbra encontrava-se numa encruzilhada e Menano era o seu mais fiel representante.

O Canto sofrera, então, um desvio da sua matriz serenil de meados do século XIX para uma forma de cantar ultra-romântica, que fez desaparecer o estilo operático (muito mais consentâneo com a sua génese).
Cantava-se, agora, de uma maneira dolente, arrastada, onde os pianos de voz e o prolongamento do canto surgiram como forma de satisfação do próprio ego do cantor, alimentando-se, assim, o saudosismo e a nostalgia de quem escutava. Estava-se, pois, na presença de um cantar lamejas, doentio, piegas, que dominava o ambiente musical académico de primórdios do século XX.

No início da década de 20, assistiu-se à debandada de Coimbra de cantores como Agostinho Fontes, Roseiro Boavida e Manassés de Lacerda, para além do próprio António Menano (em 1923). Saídas que seriam colmatadas com a chegada daqueles que - juntamente com Menano - iriam constituir a chamada "Geração de Oiro" da Canção Coimbrã, nomeadamente: Lucas Junot (1902-1968, que vem cursar Ciências em 1922), Paradela de Oliveira (1904-1970, que vem para Direito, 1924), Armando Goes (1906-1967, que vem para Medicina, 1924), entre outros. E é nesta geração, e nesta década, que vai pontificar o cantor e poeta do movimento da Presença, Edmundo de Bettencourt (1899-1973). Quando chega a Coimbra, em 1923, para se matricular em Direito, é Artur Paredes (1899-1980) - grande revolucionário da guitarra de Coimbra - que o vai acompanhar, encetando ambos, uma autêntica sapatada naquele cantar sofrido, magoado e triste. E se os acompanhamentos de Artur Paredes são fortes, vigorosos, cortantes, de puxadas rápidas na guitarra, com Bettencourt o canto é muito mais arejado, viril, gritado! Tematicamente vai buscar canções populares dos Açores, do Alentejo e da Beira Baixa, cantando-as - não como o seriam, tal e qual, por um grupo de cantares da região em questão - mas à maneira de Coimbra, recuperando uma forma de cantar que prova a existência nesta cidade de uma toada musical muito própria, regional e local, popular, moldada por um filão académico, que de maneira nenhuma se confunde com qualquer outro género musical - e que nada tinha a ver com o Fado. Com esta sua atitude, Bettencourt consegue personalizar a Canção de raiz coimbrã, ao dar-lhe autonomia e ao reforçar- lhe as diferenças face ao Fado de Lisboa, colocando tudo no seu devido lugar: Fado é Fado - o de Lisboa! Em Coimbra o Canto é outro!

Chegara, assim, a Escola Modernista à Canção Coimbrã!

Quem faz a ponte para os anos 40 são cantores como Lucena Sampaio (que se licenciou em Medicina, em 1932), Manuel Julião, Lacerda e Megre (1909-1992, que estudou Direito entre 1927 e 1932), Serrano Baptista (que estudou em Coimbra entre 1925 e 1932), Artur Mota (n. 1922), que viveu em Coimbra entre 1935 e 1940, e Jorge Gouveia (que frequentou a Universidade de Coimbra entre 1938 e 1942), entre outros.

Na década de 40, embora tenham surgido cantores como Alexandre Herculano (n. 1927), Anarolino Femandes (n. 1926), Alcides Santos (que estudou Ciências entre 1945 e 1948), Napoleão Amorim (n. 1924) ou Augusto Camacho (n. 1924), não foram suficientes para darem um firme seguimento à mensagem poética e estético-musical de Edmundo de Bettencourt! Foi preciso esperar o advento da geração de 50, para que se vivesse um forte ressurgimento desta Canção. Homens como Fernando Machado Soares (n. 1930), Femando Rolim (n. 1931), José Afonso (1929- 1987) e Luiz Goes (n. 1933), são hoje considerados os dignos cantores da 2ª geração de oiro do Canto Coimbrão Académico.

Nos finais dos anos 50, este filão académico sente duas fortes influências: por um lado, a sensibilidade de Machado Soares (que buscava o reencontro com o melhor de Bettencourt/Paredes), e por outro, a de José Afonso (que procurando libertar-se da guitarra como acompanhamento, recupera a viola para essa função, na esteira do que já havia sido feito, nos anos 20, com Armando Goes)! Resultou daqui, o emergir de dois movimentos na década de 60. José Afonso acaba por influenciar toda uma linha progressista - 1º movimento - que tem como bandeira na Academia, Adriano Correia de Oliveira (1942-1982) - que havia chegado a Coimbra em 1959, e que depois de uma fase tradicional, inicia um canto de intervenção político-social. Mas, a geração de 60, não era só uma importante referência no âmbito da contestação académica ao Estado Novo - com homens como António Bernardino (1941-1996), António Portugal (1931-1994) na guitarra, a poesia de Manuel Alegre, e o próprio Adriano, mas também, uma consciência viva quanto à necessidade de renovação da linha tradicional da sua canção - 2° movimento. Esta "urgência" teria eco nos anos 60, com o guitarrista, autor, compositor e poeta Nuno Guimarães (1942-1973), desenvolvendo uma temática musical e poética que se iria reflectir no canto de José Manuel dos Santos (1943-1989) e, também, do próprio António Bernardino, bem como, outros testemunhos vocais para essa renovação da linha mais tradicional: José Miguel Baptista (n. 1942), António Sousa Pereira (n. 1938), Fernando Gomes Alves (n. 1941) e Armando Marta (n. 1940).

Todavia, é nos finais desta década que reaparece Luiz Goes, assumindo com o guitarrista e ideólogo João Bagão, um Novo Canto. Ele foi dos poucos cultores, posteriores a Edmundo de Bettencourt, que melhor soube assimilar a importância da Geração da Presença na redefinição da Canção de Coimbra. Foi ele que, na esteira de Bettencourt, conseguiu revolucionar esta Canção, inovando sem ser ortodoxo, passando a ser, a partir de então, o "farol" depositário de um novo discurso temático- musical.
Surgia, assim, a Escola Neo-Modernista da Canção Coimbrã!

Na década de 70, desde logo uma data nos surge, faseando atitudes, práticas e mentalidades: o 25 de Abril de 74! Se antes da Revolução, ao longo dos anos 60, o canto era predominantemente contestatário (quase não havendo lugar à linha mais tradicional), e o imaginário estudantil abarcava e reflectia-se nas várias crises académicas que caracterizaram esse período, depois de Abril, a contestação académica, ao ressurgimento do "chamado Fado de Coimbra" era nota dominante - o epíteto de "reaccionarismo" adjectivava toda a tentativa de recuperação do Canto Académico! Porém, em 1978, realiza-se o 1º Seminário do Fado de Coimbra, sob a tutela da Comissão Municipal de Turismo da Câmara Municipal, e em 1979 a "Semana Académica" ensaia o regresso da Queima da das Fitas (1980).

O ressurgimento das tradições e do Canto Académico tornou-se inevitável!

Por volta de 1980, existiam em Coimbra duas escolas de aprendizagem do Canto e da Guitarra: a Secção de Fado da AAC, que então nascia (25/6/80), e dava os primeiros passos, e a Escola do Chiado, ligada à Câmara Municipal - que dava assim continuidade a um trabalho de ensino da guitarra encetado por Jorge Gomes (n. 1941), no ACM, a partir de 1974.
Novos cultores surgiram então, que se constituíram em quatro grupos representativos da Geração de 80: o Grupo de Fados e Guitarras de Coimbra (com os cantores Luís Cartario, António Nogueira e Vítor Silva), o Grupo Académico de Fados e Canções de Coimbra (com os cantores António Pimentel e Jorge Cravo), o Grupo Praxis Nova (com os cantores Luís Alcoforado e Rui Moreira), e o Grupo Toada Coimbrã (com os cantores Alcides Esteves e Rui Lucas), entre outros cantores episódicos.

Na História mais recente - Geração de 90 do século XX - importa referir o Grupo Capas Negras (com Luís Alvelos e Eduardo Filipe), o Grupo Alta Medina (com Henrique Garcia), o Grupo Alma Matter (com Carlos Pedro e Nuno Correia), Quinteto de Coimbra (com António Ataíde e Patrício Mendes), o Grupo Verdes Anos (com António Dinis, Rui Seone e Gonçalo Mendes), os Grupos de Fados da Tuna Académica (com José Manuel Beato, Rui Ferreira, Jorge Machado e Rui Pimenta), o Grupo Saudades de Coimbra (com João Barreiros e Henrique Guerra) e o Grupo Coimbra de Sempre (com João Pinto e Nino Pereira), entre outros.

Desta forma se pode constatar que esta tradição musical de raiz coimbrã está viva e recomenda-se, continuando geracionalmente a ser renovada por novas vozes e instrumentistas.

Jorge Cravo